Os bordões estão transformando a música pop brasileira em uma Escolinha do Professor Raimundo?

  1. 'Cê acredita', 'Cebruthius', 'Yukê?', 'Chora não, coleguinha', ''Vai, Safadão'... Cantores apostam na repetição de frases engraçadinhas que estão virando até marcas registradas no INPI.

Publicado por: Braulio Lorentz e Rodrigo Ortega
Em: 
15/05/2019 - 06:00


Personagens tentam cativar o público repetindo um bordão engraçadinho atrás do outro. Poderia ser uma nova temporada da "Escolinha do Professor Raimundo", mas é a geração atual da música pop brasileira.

As frases se repetem em todo canto: gravações de funk, shows de forró e pagode, redes sociais... Os bordões divertem e ajudam a moldar e popularizar as imagens dos cantores.

A piada virou negócio: bordões foram alvos de disputa no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), casos de “Cê acredita”, de Kevinho, e “Cebruthius”, da MC Loma. Outros, como "Vai, safadão", tiveram registro aprovado em 2019. Há também pedidos recentes em análise de Simone & Simaria ("Chora não, coleguinha") e Jerry Smith ("É o pique").

No vídeo e na arte abaixo, veja os alunos mais aplicados dessa escola e entenda a seguir como os shows e clipes brasileiros estão quase virando quadros do "Zorra".


Escolinha do Pop: veja os principais bordões de artistas brasileiros — Foto: Rodrigo Sanches/G1


O G1 falou com cantores e especialistas em música e humor sobre as origens e as funções dos bordões. No geral, fica claro que:

1. O funk adotou os "carimbos", assinaturas sonoras de DJs e MCs, tradicionais no rap e na eletrônica. Além de seus carimbos, os DJs de funk ajudam os MCs ao registrar conversas e piadas no estúdio e incluir nas faixas. Daí surgem bordões dos cantores.

2. O circuito de shows do Nordeste do Brasil, especialmente de forró, brega e pagode baiano, é terreno fértil para bordões. As frases não nascem em estúdio, mas ao vivo.

Wesley Safadão e Léo Santana são dois mestres dessa arte no forró e no pagode. Já no funk, o maior exemplo é MC Kevinho. Foi de zoeira no estúdio que surgiu o "cê acredita" dele, registrado pelo DJ Jorgin.

A união da música do Nordeste com o funk não poderia deixar de render grandes bordões. A estrela do brega-funk MC Loma emplacou gritos como o "cebruthius!" (pronúncia improvável dela para o inglês "the Bluetooth").


Fácil, sonoro e legítimo

O objetivo imediato é divertir e engajar o público. "Quanto mais fácil, sonoro e legítimo, melhor", diz Marcela D'Arrochella, diretora comercial do site Sua Música, forte no mercado do Nordeste.

"No forró isso é intenso, tanto no estilo eletrônico atual quanto no tradicional, lá da vaquejada. O Mano Walter é um cantor que pega coisa lá do passado e emplaca bordões à moda antiga como 'o chicote vai estralar'", cita Marcela.

A tradição também é viva, como sabe bem Wesley Safadão, sempre atento ao papo do povo na rua. "Ele sempre tem bordões novos nos shows. Às vezes eles até viram música, como 'vida de casal é boa, só perde para a de solteiro' [de 'Sonhei que tava me casando]", afirma Marcela.


Construção de personagem

Marcela também vê nas frases estratégias específicas. É o caso de Simone e Simaria, que se lançaram como dupla em 2012, após sucesso na banda Forró do Miúdo. Foi quando começaram a usar bordões como "chora não, coleguinha".

"O bordão ajudou a posicioná-las como dupla, a fazer todo mundo saber que agora não era a banda, mas as duas, as 'coleguinhas'", ela explica.

Outro bordão que identifica o personagem com poucas palavras é o "cê acredita", do MC Kevinho. Não que tenha sido planejado.

| "Eu já falava isso com meus amigos, brincando. Fui gravar 'Olha a explosão' com o DJ Jorgin. No estúdio eu falo um monte de besteira, e ele deixa gravando. Ele pegou o 'cê acredita' e falou: 'E aí, o que você achou?'. Achei fera, vi que ia virar. E deu certo", conta Kevinho ao G1.


A frase, repetida por ele depois em várias músicas, tem a cara de Kevinho e de sua trajetória: a irreverência, o sotaque do interior paulista e ainda um tom de surpresa e superação.


Kevinho tatuou seu bordão 'Cê acredita' no braço — Foto: Tiago Alves/Divulgação e Rodrigo Ortega/G1

DJs viraram curadores de bordões

"'Cê acredita' foi um acerto", avalia Mano DJ, produtor de funk em SP. "Quando um MC vem ao estúdio, a gente já sabe que tem que pegar uma coisa que faça o público lembrar dele." Nesse esquema, o DJ registra as brincadeiras e vira um "curador de bordões" para pescar tiradas.

Outra cria do funk, essa já mais popular, usou bem uma frase para ajudar a espalhar e moldar sua imagem. Em 2014, Anitta soltou em um DVD uma pergunta que caiu no gosto dos fãs nas redes. Ela percebeu o poder do bordão debochado, poderoso e sensual, e desde então repete em shows:

| "Vocês pensaram que eu não ia rebolar minha bunda hoje?"

Da piada ao cartão de visita

As funções do bordão na música e no humor são parecidas. Autor de uma tese sobre discurso do humor, Rony Petterson é PHD em Linguística do Texto e do Discurso pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Para ele, quando se repete muito um mesmo bordão, não há mais surpresa e o efeito humorístico tende a diminuir.

"Os bordões podem passar a marcadores de identidade ou a respostas prontas para qualquer pergunta", explica o pesquisador.


Seu Boneco (Lug de Paula) na capa de disco lançado pelo personagem em 1994 — Foto: Reprodução

O personagem Seu Boneco, da "Escolhinha", é um bom exemplo. Quando ele se despede falando "aí eu vou pra galera", não é mais uma questão de ser engraçado. O bordão reforça características do personagem. "É um cartão de visita do comediante."

| Mas e quando essas repetições são na música? "O bordão é o slogan do artista", resume Petterson. "Ajuda a marcar o artista dentro de um universo musical no qual estrelas aparecem e somem rapidamente."

Paulo Cursino já escreveu piadas para a TV ("Sai de baixo", "A grande Família") e cinema ("De pernas pro ar", "Fala sério, mãe", "O candidato honesto"). E defende o uso de um bom bordão:

"Criar um bom bordão é dificílimo. Público e crítica só aceitam o bordão que funciona e não existe ciência exata. Mistura sorte e talento."

Mas como sabemos que um bordão deu certo? "Dependendo da popularidade, os bordões podem virar uma gíria. A qualidade do bordão e o quanto sintetiza bem uma ideia é que fazem com que dê certo", diz Cursino.


Vai, INPI!

A meta de transformar bordões em marcas registradas é séria. Wesley Safadão conseguiu no início de 2019 no INPI o registro de uso exclusivo de "Vai, safadão" em shows e gravações. Outra marca aprovada foi do DJ Perera, forte do funk de SP, que registrou seu carimbo "DJ Perera, original".

Em 2017, a produtora GR6, que já foi ligada a Kevinho, tentou registra a marca "Cê acredita", mas o pedido não foi concedido e está arquivado. O mesmo aconteceu com um o "cebruthius" da MC Loma, que teve um pedido negado a uma mulher chamada Maria Aparecida da Silva Martins.

Jerry Smith quer a propriedade da marca "É o pique" e o INPI analisa o pedido. Já Simone e Simaria contestaram a tentativa de registrar a expressão "chora não, coleguinha" por uma produtora de TV, e agora pedem o registro em nome da empresa delas.

| O DJ Yuri Martins pediu ao INPI o registro em seu nome da frase "Yuri Martins produziu? Bum! Mais uma que explodiu", que aparece em hits produzidos por ele.

"São tentativas de reforçar a proteção, já que o direito autoral não protege claramente o uso de expressões dentro das músicas, nem de seus títulos", diz Daniel Campello, advogado e diretor da empresa ORB Music.

"Com a popularização dos bordões, é uma forma de garantir a exclusividade na publicidade, por exemplo" Ele lembra que Kevinho usou seu "cê acredita" em anúncio recente de lanchonete da qual virou garoto-propaganda.