Fonte: Jornal GGN
Publicado por: Luis Nassif
Em: 13/09/2018 - 22:32; Atualizado em 16/09/2018 - 13:11
– Peça 1 –
Como a mídia blinda aliados
Uma das piores consequências da transformação do combate à corrupção em bandeira ideológica foi a blindagem proporcionada aos aliados do golpe. Procuradoria Geral da República, Ministério Público, tribunais, grupos de mídia montaram um acordo tácito: só repercutem denúncias produzidas pelo sistema. E o sistema se fecha em defesa dos seus.
Provavelmente por conta desse pacto, a Ministra Carmen Lúcia, atual presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) foi poupada, quando se descobriu que adquirira por R$ 1,7 milhão uma mansão em Brasília avaliada em R$ 3 milhões. O dono original era o doleiro Fayed Traboulsi. Nos registros do cartório figurava Andréa Filipe Ramos, casada com Alexandre Ribeiro, sócio da Carlinhos Cachoeira.
A denúncia só saiu em blogs. Nos jornais, mereceu uma nota piedosa da Coluna do Anselmo, no dia 27 de janeiro de 2015.
Armação ilimitada
A ministra Cármen Lúcia, da turma do STF que vai julgar os envolvidos na Operação Lava-Jato, pode estar sendo vítima de uma armadilha às vésperas desse julgamento histórico.
É que circula a história que ela comprou uma casa em Brasília, avaliada em R$ 3 milhões, por R$ 1,7 milhão. A dona do imóvel era Andréa Felipe Ramos Chaves. Ela seria casada com Alexandre Ribeiro, apontado como sócio do bicheiro Carlinhos Cachoeira.
O recado foi bem captado. Vítima da tal “armação ilimitada”, a Ministra não abriu mão da mansão. Nos meses seguintes, se tornaria uma incansável lutadora pró impeachment. E uma frasista incomparável. Como no voto em que definiu a prisão do senador Delcídio do Amaral, em que cunhou a frase clássica: “O escárnio venceu o cinismo”.
Em dezembro de 2015, deu o voto de desempate para garantir votação aberta no processo de impeachment. Em março de 2016, premiada pelo Globo com o “Gente que faz”, sustentou que não havia golpe em curso. Eleita presidente do STF, foi a mais implacável dos juízes, manipulando a pauta do Supremo de maneira inédita.
– Peça 2 –
o caso do Pipeline
Além da mansão ilimitada, Cármen Lúcia tornou-se protagonista de um dos mais obscuros processos que passaram pelo STF (Supremo Tribunal Federal): o caso das pipelines.
Antes, um pequeno histórico do tema.
Quando criada a Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1994, foram criados vários acordos multilaterais, entre eles o Acordo TRIPS, para propriedade intelectual. O TRIPs definia um padrão mínimo de proteção, ampliando a patenteabilidade para todos os campos tecnológicos.
O governo FHC, em um dos episódios mais mal explicados do período, incluiu a patente pipeline nesses acordos. Foi um dispositivo temporário aceitando depósitos de patentes em campos tecnológicos não reconhecidos anteriormente pelo Brasil, do qual o principal beneficiário foi o setor farmacêutico.
Pela porta escancarada entraram 1.182 pedidos de patentes, dentre os quais vários medicamentos essenciais para a saúde pública e que já eram de domínio público.
Aliás, essa história precisa ser recuperada.
Foi uma esbórnia total (confira aqui um bom trabalho sobre o tema). A lei permitia, inclusive, o depósito de pedidos mesmo fora do período de prioridade e não exigia exame técnico do pedido no Brasil, bastando a decisão favorável no país de origem da patente. Entraram todos os inventos não contemplados no Código de Propriedade Industrial brasileiro que vigorava até então. O Acordo TRIPS permitia um período de transição. Mas nem isso foi aproveitado.
Até então, por não reconhecer patentes de medicamentos, tinha sido iniciada uma produção nacional de antirretroviral (ARVs), os medicamentos contra AIDs. Essa produção, além de melhorar as pesquisas internas, barateara substancialmente os medicamentos.
Com a nova lei, a produção nacional foi interrompida. Foi o caso do lopinavir/ritonavir (Abbott), abacavir (GlaxoSmithKline — GSK), efavirenz (Merck), nelfinavir (Roche) e amprenavir (Vertex).
No período José Serra ampliou-se a utilização de remédios patenteados, com a incorporação nos protocolos do Ministério da Saúde do nelfinavir, em 1998, e do efavirenz, em 1999. Tudo isso ocorreu no mesmo período em que Serra montou um enorme lobby em favor da norueguesa Nordisk, acabando com a Biobrás, fábrica de insulina nacional.
Pouco foi feito posteriormente.
Em 2005, foi declarado o interesse público do medicamento lopinavir/ritonavir. O passo seguinte seria a licença compulsória. Isso não ocorreu e o governo acabou assinando um acordo bilateral com a Aboot, com redução ínfima dos preços.
O monopólio assegurado pela pipeline prejudicou tratamentos internos durante toda a década de 2.000. Muitas vezes os tratamentos foram interrompidos por problemas na importação.
– Peça 3 –
a ADIN apresentada no STF
Em fins de 2007, a Federação Nacional dos Farmacêuticos (FENAFAR), em nome do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (GTPI/Rebrip), apresentou na Procuradoria Geral da República um trabalho demonstrando a inconstitucionalidade da lei do Pipeline.
No dia 24 de abril de 2009 foi protocolada a Ação Direta de Inconstitucionalidade, proposta pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão contra os artigos 230 e 231 da Lei Federal não 9.279 de 14.5.1996.
No parecer da PGR , levantavam-se aspectos conceituais sobre patente:“O direito fundamental não é do inventor, que tem apenas direitos de natureza patrimonial, mas sim da coletividade, a um desenvolvimento tecnológico que venha ao encontro de suas reais necessidades. Parte final do inciso XXIX do art. 5º da Constituição. Patente e a interpretação restritiva dos monopólios. Privilégio que não pode ignorar os princípios vetores da ordem econômica. O requisito da novidade atua para compatibilizar as limitações naturais das patentes com o acesso público ao conhecimento. Aquilo que se encontra em domínio público não pode ser objeto de apropriação singular. Patente e novidade são indissociáveis. A tutela da patente, dada pela Constituição, não perde de vista a novidade, seja porque constitutivo da própria noção de patente, seja porque equivalente ao de invenção. Mecanismo das patentes pipeline permitiu aos detentores de patentes no exterior, relativas a produtos, substâncias e processos até então não patenteáveis – já em domínio público –, o direito de aqui registrá-las”.
Em pouco tempo, candidataram-se vários “amicus curiae” – assistentes do autor no processo – comprovando a relevância do tema. Entraram a Associação Brasileira de Sementes e Mudas, a Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina), a Conectas, a Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos, a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, Médicos sem Fronteira, Federação Nacional dos Farmacêuticos, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, Grupo de Incentivo à Vida, Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS no Estado do RS, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e a Fiocruz.
Na outra ponta, em defesa da Lei do Pipeline, a Interfarma, representante dos laboratórios internacionais, tendo como presidente e principal lobista Antônio Britto, ex-governador do Rio Grande do Sul.
Nas ações no Supremo, foi apresentado um levantamento meticuloso dos efeitos do Pipeline na saúde públiuca. “O Instituto de Patentes Pipeline e o Acesso a Medicamentos: aspectos econômicos e jurídicos deletérios à economia da saúde” , preparado por especialistas da Fiocruz, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da ONG Médico Sem Fronteiras.
Apenas no caso da aquisição de retrovirais entre 2001 e 2006, os prejuízos foram os seguintes:
Em 10/03/2010 o processo já estava concluído nas mãos da relatora. Mas não foi a julgamento. Devido à gravidade do tema, que envolvia remédios essenciais, foi pedida uma liminar, também rejeitada por Carmen Lúcia.
Em parecer, Soraya Lunardi, da Unesp, e Dimitri DImoulis, da Escola de Direito de São Paulo da FGV estranharam a decisão:“No caso pipeline, não foi tomada decisão sobre o mérito e mesmo o pedido de liminar, sobre tema de evidente repercussão para as finanças públicas (compra de remédios), permaneceu sem resposta. Na contramão dos objetivos de agilidade e de segurança jurídica, o Supremo ignorou os pedidos e convalidou a decisão do legislador com seu silêncio. Qui tacet, consentit”.
O termo significa “quem cala”, consente. De fato, como a Lei estipulava prazo de 20 anos de validade para as patentes, se houvesse muito demora, o prejuízo já estaria consumado.
Durante todo o ano de 2011 o processo foi movimentado apenas duas vezes, no comunicado da renúncia ao mandato de um certo Sebastião dos Reis Júnior. Em 2012, ficou paralisado. Em 2013, alguns despachos aceitando os “amicus curiae”. E continuou dormindo na gaveta da relatora Carmen Lúcia durante 2015.
– Peça 4 –
o último ato de Carmen Lúcia
Desde o início havia críticas à maneira como Carmen Lúcia conduzia a ação.
No STF, apenas nos casos penais, de prisão, há a obrigação de pautar os habeas corpus. Nos demais casos, o relator tem pleno domínio do caso. Cabe a ele, e apenas a ele, decidir quando o relatório está pronto. Depois disso, ao presidente da casa pautar para votação.
Apenas no último dia 28/06/2018, a relatora Carmen Lúcia, resolveu concluir o relatório e a presidente Carmen Lúcia programou o julgamento.
No dia 8/08/2018 a Interfarma manifestou interesse na sustentação oral. O calendário de julgamento foi publicado no dia 14/08/2018.
À esta altura, já haviam vencido todos os prazos de validade dos pipelines – 20 anos. Poderia ser um julgamento inútil.
No dia 23/08/2018 Carmen Lúcia recebeu e, audiência no Salão Nobre do STF a diretora jurídica da Interfarma, Tatiane Schofield, e Gustavo de Freitas Nobre. Na conversa, é possível que tenha sido informada de consequência não previstas do julgamento. Caso o Supremo considerasse inconstitucional a Lei do Pipeline, o país poderia cobrar retroativamente dos laboratórios os 5% de roylaties remetidos para suas matrizes por 20 anos.
Seja lá o que conversaram, nos dias seguintes Carmen Lúcia retirou da pauta a votação da Lei do Pipeline. GGN entrou em contato com sua assessoria, que informou não haver nenhum plano de incluir o tema novamente na pauta de julgamentos.
Não foi a única medida de Carmen Lúcia beneficiando os associados da Interfarma.
Conforme o GGN revelou, em 2016, a Interfarma montou um enorme lobby em favor da judicialização da saúde. Havia a suspeita de que, por trás das ações judiciais, criara-se uma verdadeira indústria para a venda de medicamentos de alto custo.
Segundo dados do Ministério da Saúde, 80% das ações eram propostas pelo mesmo escritório de advocacia, comprovando a existência de uma articulação. Foram acusações graves: "Há convênios de laboratórios fabricantes com laboratórios de análises clínicas, e este laboratório fabricante paga o de análise para fazer um exame que comprove a necessidade daquela pessoa ter o medicamento que ela fabrica, que vira uma decisão judicial", afirmou o ministro Ricardo Barros.
O Ministério Público de São Paulo identificou a compra de medicamentos para hipercolesterolemia homozigótica, doença rara, a um custo de mil dólares o comprimido. Segundo o Secretário da Saúde de São Paulo, David Uip, “Em 30 dias são 30 mil dólares. Isso custou R$ 36 milhões ao Estado e na absoluta maioria não havia sequer a indicação da doença", disse. "Os médicos ganhavam para prescrever", afirmou.
Carmen Lúcia, que adiou por anos um julgamento que poderia reduzir o custo dos medicamentos, tornou-se uma verborrágica defensora dos direitos dos doentes: "Estamos aqui para tornar efetivo aquilo que a Constituição nos garante. A dor tem pressa. Eu lido com o humano, eu não lido com o cofre", disse. "O que o juiz fala quando a gente discute (o tema) é que há uma judicialização da saúde. Não. Há a democratização da sociedade brasileira, do cidadão que até a década de 1980 morria sem saber que tinha direito à saúde e que podia reivindicar esse direito. Como juíza, o meu papel é garantir esse direito", afirmou.
Um dia a blindagem acaba. E será possível saber quais as razões que levaram Carmen Lúcia a atuar dessa maneira em favor dos laboratórios internacionais.A explicação de Carmen Lúcia
Durante todo o dia, o GGN abriu espaço para a assessoria de Carmen Lúcia explicar de maneira coerente os motivos da procrastinação do julgamento do Pipeline. Até o fechamento do artigo, não havíamos recebido explicações. Assim que as explicações chegarem serão colocadas no artigo.